Crise internacional: o efeito borboleta em nossas mesas

Será que o conflito na Ucrânia pode causar uma nova revolta do pão no Egito?

Infelizmente sim, as condições para que isso aconteça existem. Logo após a pandemia, a eclosão da guerra na Ucrânia, assustadora, inesperada e de nenhuma forma justificável, nos faz sentir, mais uma vez, impotentes e sufocados por circunstâncias totalmente fora do nosso controle. E num mundo profundamente interconectado, também nos faz lidar com as implicações negativas do chamado “efeito borboleta”. Isto significa que as consequências de um evento dramático, limitado a uma área geográfica específica, podem se manifestar de formas às vezes inesperadas em regiões muito distantes do planeta, lançando as bases para crises graves e duradouras.  

Estou me referindo especificamente ao setor agroalimentar, consciente de um fato triste: conflitos e fome são fenômenos intimamente ligados, quando um acontece, o outro segue quase que naturalmente. Isso é confirmado pelas primeiras informações do Programa Mundial de Alimentos da Ucrânia, onde mais de 3 milhões de pessoas estão recebendo ajuda alimentar; pelas declarações preocupadas de inúmeros países africanos, do Oriente Médio e da própria Europa que, ainda que por razões diferentes, temem as consequências diretas e indiretas do conflito sobre preços e abastecimento de alimentos.  

O Iêmen, por exemplo, importa 90% de seus alimentos, e 50% de seu trigo vem da Rússia e da Ucrânia. Para um país onde mais da metade da população (15 milhões de habitantes) já vive em condições de insegurança alimentar, a guerra representa o agravamento de uma situação que já é dramática.

O Egito, que no passado foi um grande produtor de trigo graças à fertilidade das margens do rio Nilo, agora compra 80% de seu trigo da Ucrânia, devido ao processo de urbanização e à desertificação. Numa região onde o pão sempre foi um bem politicamente controverso (além de subsidiado), existe a preocupação de que o aumento dos preços da matéria-prima provoque instabilidade econômica e revoltas da população.

Por causa da emergência climática, o Marrocos está passando pela pior estiagem dos últimos 30 anos. No médio prazo, será obrigado a importar cereais do exterior, com custos mais altos dos que os previstos, devido ao conflito. Ao mesmo tempo, o governo do Quênia está preocupado com o preço dos fertilizantes (a Rússia é um dos principais fornecedores do mundo), que provavelmente aumentará desmedidamente. Para os pequenos produtores, preços mais altos significam menor uso de fertilizantes e, portanto, uma colheita menor e, consequentemente, uma renda menor. Isso é mais uma confirmação da necessidade de mudar para sistemas alimentares sustentáveis, que devolvam o poder aos agricultores e produzam a partir de insumos locais e renováveis.

Na Europa, precisamos reconhecer que nossos sistemas alimentares não terão como não sofrer as consequências negativas do conflito. A Ucrânia é o quarto maior fornecedor de alimentos da UE, enquanto a Rússia fornece 40% do gás utilizado para aquecer as estufas onde são cultivados mais do que a metade dos vegetais que consumimos. O aumento do preço do gás pode causar não apenas um aumento do preço dos alimentos, mas também a falência de algumas explorações agrícolas e, portanto, uma diminuição na oferta.  

Assim, logo após a pandemia, este conflito nos mostrará a vulnerabilidade e a injustiça de um sistema alimentar globalizado, que responde apenas à lei do lucro. E, enquanto manifestamos solidariedade ao povo ucraniano pela tragédia que está atravessando, bem como ao povo russo contrário às ações cruéis de seu governante, peço às instituições nacionais e internacionais que reflitam seriamente sobre o dever moral de transformar o sistema atual, colocando a soberania alimentar no centro.

Porque os alimentos não podem, em momento algum, tornar-se uma arma que amplifica os danos de um conflito. Os alimentos devem ser, sempre e apenas, uma ferramenta de difusão da paz. 

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