Slow Food em Uganda: Através da lente de um cineasta
20 Ago 2018
Uganda, situada no centro da África Oriental, tem uma biodiversidade extraordinariamente rica, que é parte indissolúvel de sua gastronomia e cultura. A agricultura e a produção animal são responsáveis por quase 99% dos empregos da África Oriental.
Com dois cineastas brasileiros – Henrique G. Hedler, sociólogo, produtor multimídia e ativista alimentar; e Felipe Abreu, repórter fotográfico independente, diretor cinematográfico e documentarista –, o Slow Food tratou de problemas importantes que afetam os pequenos produtores, em particular, a grilagem de terras. A imagem que mostram de Uganda parte da certeza de que a produção cinematográfica e a fotografia são as formas mais eficazes de defesa dos direitos, pois tentam levar a voz dos agricultores locais para o resto do mundo.
Colaborando com o Slow Food Uganda, a equipe produziu uma série de seis documentários, destacando os desafios que enfrentam os pequenos produtores das mais importantes safras de exportação do país: bananas e café. A série começa em Mbale, Região Leste de Uganda, uma paisagem pitoresca de cachoeiras majestosas, rios sinuosos e frutas exóticas. Uganda tem mais de 50 variedades de banana e é o maior produtor de café arábica, libérica e robusta. Felipe e Henrique explicam como filmaram os documentários: “nas cenas iniciais, procuramos descrever o ambiente natural, o estilo de vida dos pequenos agricultores e a biodiversidade que prospera nessas comunidades. A maioria dos vídeos começa com imagens feitas por um drone, retratando a abundância de alimentos nas áreas rurais – bananas, café, jacas, galinhas, etc. Uma breve introdução para mostrar que a maioria dos pequenos agricultores em Uganda vive numa relação simbiótica com a natureza. Em última análise, é a nossa tentativa de conectar o espectador com as realidades locais, mostrando que a agricultura de pequena escala em Uganda é o meio de vida da maioria das pessoas, garantindo uma vida confortável e digna”. Após a introdução, é introduzido o terrível tema da grilagem de terras. A grilagem de terras, que afetou Uganda nos últimos 10 anos, é a “aquisição (arrendamento, concessão ou compra definitiva) por uma corporação ou um governo, de grandes áreas de terras, por um longo prazo (com frequência, de 30 a 99 anos)”, Dotta, Martina, et al., (2017, 2). Os moradores de Mbale estão sendo expulsos de suas terras, os magistrados locais são indiferentes às suas reivindicações, e os governos continuam entregando áreas de terra para investimentos estrangeiros. “Já visitamos mais de 20 países africanos ao longo dos anos e a apropriação de terras é um problema que encontramos em quase todas as regiões. É um problema cada vez maior, e aqueles que sofrem as consequências mais graves são muitas vezes os pequenos agricultores. Apesar de suas tradições imemoriais de trabalho na terra, os agricultores locais dependem, com frequência, de sistemas informais de posse de terra e não entendem os aspectos técnico-jurídicos que deveriam protegê-los dos grileiros. São alvos fáceis de deslocamentos e expulsão.” Os cineastas também conhecem a grilagem de terras onde vivem, na América Latina, “essas são as mesmas experiências vividas pelos nossos amigos em nosso próprio país. Por toda África e América Latina, os pequenos agricultores estão sendo expulsos das próprias terras”.
Em Uganda, a banana é muito importante e envolve inúmeros aspectos da cultura local, com diferentes variedades utilizadas para diferentes ocasiões. A banana é fonte de renda, ajuda a mandar os filhos para a escola, é usada para produzir um destilado, para alimentar o gado, fertilizar a terra e está presente nos momentos importantes da vida. “A banana é o alimento básico de Uganda. Para a população local, a banana não é apenas alimento, também faz parte da cultura, dos hábitos e práticas cotidianas. Cada variedade é utilizada com um propósito específico. Algumas variedades são consumidas como sobremesa, outras como lanche ou prato principal, conhecido como matoke. Ouvimos contar que há variedades usadas em cerimônias de casamento ou para comemorar o nascimento de gêmeos. Preservar todas essas variedades é do interesse do povo ugandense. Se essas variedades forem extintas, um elemento da cultura de Uganda desaparecerá com elas.”
Além da grilagem de terras, os cineastas destacaram a vulnerabilidade dos pequenos agricultores frente à mudança climática em dois documentários que realizaram sobre a produção de café no país. Atualmente, os países que menos poluem tendem a sofrer as consequências dos efeitos da mudança climática. Para enfrentar esse problema, é necessário promover os conhecimentos tradicionais dos pequenos produtores. “Vimos, durante o nosso trabalho em Uganda, que a melhor forma de lutar contra a mudança climática é implementar práticas agrícolas que trabalhem em conjunto com a natureza, criando uma relação harmoniosa entre os agricultores e o ambiente que os rodeia. Hoje em dia, a produção agrícola global é insustentável e a mudança climática é, em certa medida, o resultado disso. A agricultura moderna depende de recursos não renováveis, como os combustíveis fósseis, que emitem gases de efeito estufa agravando o aquecimento global. Os agricultores ugandenses que implementaram práticas mais sustentáveis do ponto de vista ambiental, como a consorciação de culturas, provaram que existem formas de agricultura que podem construir comunidades mais resilientes. Conhecemos agricultores que cultivam pés de café com bananeiras e outras árvores frutíferas: as bananeiras dão sombra, criando um microclima favorável, reduzindo a evaporação e mantendo a terra úmida para os pés de café. Como resultado, esses agricultores tiveram menos problemas durante as épocas de seca.”
Durante muitos anos, os projetos de Henrique e Felipe andaram paralelamente aos ideais do Slow Food, levando os dois cineastas a procurar o movimento para essa colaboração. “Conhecemos o trabalho do Slow Food na África: em 2015, em Moçambique, aprendemos sobre o projeto das Hortas Slow Food; na África do Sul e em outros países, encontramos agricultores que haviam participado de eventos do Slow Food no exterior. Depois, quando publicamos mais artigos sobre alimentos e questões agrícolas na África, as pessoas começaram a nos perguntar sobre o papel do Slow Food nas comunidades que visitamos. Foi então que pensamos, por que não colaborar com o movimento?” O trabalho deles envolve um relacionamento com os agricultores, por isso combina perfeitamente com o trabalho do Slow Food, uma organização que, segundo eles, difere de qualquer outra que já encontraram. “Ao contrário da maioria das organizações internacionais – focadas principalmente em uma abordagem de desenvolvimento de cima para baixo, o Slow Food trabalha no nível de base, adotando uma abordagem de baixo para cima. Vimos membros do Slow Food treinados localmente – muitos vindos de áreas rurais, trabalhando diretamente com pequenos agricultores, chefs locais e suas próprias comunidades. Essa experiência nos ensinou algo muito valioso: como movimento, todos precisamos trabalhar juntos para promover um sistema alimentar bom, limpo e justo em nível global, mas essa mudança começa em nossas comunidades, seguindo nossas práticas locais e respeitando os valores locais.”
Blog & news
Mude o mundo através da comida
Aprenda como você pode restaurar ecossistemas, comunidades e sua própria saúde com nosso kit de ferramentas RegeneAction.