Rio Doce

21 Dez 2015

Em 5 de Novembro, o Rio Doce, em Minas Gerais, foi protagonista de um dos maiores desastres ambientais do Brasil, vítima do rompimento de uma barragem de rejeito de atividade mineradora da empresa Samarco. Possível que o mundo todo já saiba

Em 5 de Novembro, o Rio Doce, em Minas Gerais, foi protagonista de um dos maiores desastres ambientais do Brasil, vítima do rompimento de uma barragem de rejeito de atividade mineradora da empresa Samarco. Possível que o mundo todo já saiba disso. Causas e impactos estão entre as dúvidas que ficam. E, acreditem, continuaremos com elas por algum tempo. Primeiro, porque há manipulação de informações e, com isso, notícias contraditórias e duvidosas, que escondem interesses: “Foi um acidente”; “ Não foi acidente, foi crime ambiental”; “Samarco alega que não há perigo nos rejeitos”; “Chumbo foi detectado nas amostras de lama do Rio Doce”; “O Rio vai se recuperar em 5 meses”; “O Rio Doce está morto”. Algumas delas são obviamente mentirosas, e não precisa ser especialista para saber. Arranque uma árvore do seu quintal e veja se ela será substituída em 5 meses por outra igualmente frondosa, mesmo que você jogue uma sementinha para ajudar…

Segundo, pois ainda é necessário investigação e estudos pra saber as causas e consequências. Mas, ainda que pairem dúvidas sobre ter sido ou não um acidente, fato é: não é incomum as empresas adotarem estratégias negligentes e irresponsáveis com os sistemas que se inserem, sociais e ambientais. Começa no processo de licenciamento, muitas vezes conduzido para atender interesses político-econômicos (lembre-se que mineradoras estão entre os maiores financiadores de campanhas eleitorais), e estende-se até as práticas de operação do empreendimento. Já que incitamos algumas dúvidas, arrisquemos algumas reflexões. Sobre a toxidade da lama, os rejeitos de mineração em geral contém altos graus de toxidade. E não é exatamente por isso que se constroem as barragens de rejeitos? Se eles não fossem contaminantes, barragens não seriam necessárias. E ainda que a lama não fosse tóxica, já seria o suficiente para alterar toda a cadeia alimentar no Rio Doce, e consequentemente, todo seu sistema socioecológico, alterando a entrada de luz, a oxigenação das águas, a produtividade primária e a cadeia decorrente.

Sobre as consequências e impactos, que ainda estão se dispersando, não podem ser totalmente mensurados em tão curto período de tempo. Nem eles são conhecidos e nem sequer se estabilizaram. Os impactos continuam acontecendo, e vão continuar por anos. Aliás, o impacto ambiental da Samarco no Rio Doce começou ocorrer há muitos anos. Todos os grandes projetos de “desenvolvimento”, como atividades de mineração, usinas, construção de dutos transcontinentais, instalação de portos etc geram impactos nos sistemas socioecológicos em que se instalam desde o momento do seu planejamento. Um “acidente”, como o de Mariana, talvez seja só o ponto de irreversibilidade.

Desconheço detalhes do histórico da Samarco/ BHP/ Vale e seus estudos de impacto ambiental, mas há uma constante que se repete nesses empreendimentos. De maneira bem simplificada: uma grande empresa aporta em região abundante em recursos naturais, geralmente área com comunidades rurais que vivem desses recursos, com suas culturas tradicionais e todo um sistema único de conhecimentos e práticas de uso. Pressionadas, essas comunidades vão saindo do entorno através de processos mais ou menos escusos. Ou vendem suas terras a preço de nada, ou saem de graça ao serem ameaçados, ou são desapropriados etc… Seguindo, a empresa divulga que trará o “desenvolvimento” para a região, gerando muitos empregos. A empresa monta uma audiência pública, alguns se convencem, outros não. Anos se passam, a licença sai, e começam as obras. Só que junto com elas, chegam os funcionários, em sua maioria homens que vem de outra região, chegando a multiplicar o número de homens no município sede. E nada de empregos para os moradores… As obras são finalizadas e as vilas herdam diversos problemas sociais. Marginalização, prostituição, maior circulação de álcool e drogas, uma leva de adolescentes grávidas e de filhos sem pais. Findas as obras, começa a operação do empreendimento (após novo licenciamento), para o qual bastam poucos funcionários especializados. Neste momento, as comunidades locais sentem os impactos que já ocorrem percebendo que o tão esperado desenvolvimento é na verdade um des-envolvimento, o des-envolvimento das comunidades com seus territórios, com os processos de gestão do mesmo, com os recursos naturais. Essa não é a história da Samarco no Rio Doce. É a história de inúmeros empreendimentos des-envolvimentistas… já escutei isso de Sudeste a Nordeste do Brasil, e também em algum lugar da América do Sul. E não se espante se não for exatamente isso o que a empresa referência em mineração brasileira estiver fazendo na África, com agravantes da vulnerabilidade social.

Mas e o Rio Doce, vai se recuperar? Em ambientes bem conservados, o sistema socioecológico absorve as alterações aos poucos, adaptando-se às novas realidades, mantendo sua estrutura e função, ou voltando ao estado de origem após um tempo. É o que chamamos de resiliência e que já estava ocorrendo, com as influências da mineração. Dentre os impactos típicos desta atividade estão o desmatamento, a destruição da estrutura do solo, a contaminação do solo e da água, a mudança no curso de rios, o dessecamento de aquíferos, o risco de acidentes. Mas, o rompimento de uma barragem de rejeitos na magnitude do que foi, pode representar a irreversibilidade na manutenção deste sistema.

Estão dizendo que o rio foi destruído pela lama. Se fosse “apenas” um rio, já seria muito, mas foi-se um sistema complexo que se criou em torno do rio, um sistema com rios, afluentes e efluentes, com vidas, histórias, espécies, serviços ambientais, pessoas, cultivos, culturas, lendas, rituais. Diversas comunidades de agricultores, indígenas, quilombolas e pescadores que fazem parte deste complexo, dependem diretamente desse sistema para sua sobrevivência material e cultural. Para muitas, o rio é um ambiente que envolve um universo simbólico e ritualístico. E ele também depende dessas comunidades para se recuperar. Só que a atual geração dos adultos não verá mais o Rio como era. Porém, as comunidades precisam recomeçar suas vidas, plantar em outro lugar, pescar em outro rio. Ou então, abandonar de vez as atividades tradicionais. E neste período, o conhecimento e a cultura tradicional em torno do Rio não serão transmitidos para as futuras gerações. Rio sem pessoas, pessoas sem Rio. E aí, abre-se precedente para o avanço da mineração.

O Slow Food, assim como outras organizações, movimentos, sociedade, governantes pode ter atuação importante nesse cenário. Lutar para que o Rio seja uma área destinada à recuperação e aumento da resiliência deste sistema. Fomentar meios das comunidades afetadas manterem seus modos de vida, ainda que em outro lugar. Além disso, para prevenir que o mesmo não ocorra em outros lugares, é fundamental apoiar movimentos sociais de ameaçados e atingidos por barragens e pressionar por mais transparência nos processos de licenciamento de grandes empreendimentos. Se esses projetos não forem guiados por sérios estudos de impacto ambiental, “acidentes” do mesmo tom vão continuar ocorrendo com essas comunidades, no Brasil, na América Latina, na África.

Se ainda lhe faltam dados para entender a dimensão desse desastre, segue alguns:

“ 50 milhões de metros cúbicos de rejeito de minério de ferro são despejados no Rio Doce”

“Distrito de Bento Rodrigues (MG) é destruído pela enxurrada de lama.”

“Milhares de pessoas ficaram sem água. A água do Rio Doce não deve ser usada para fins de abastecimento”

“ 11 mortos foram identificados, e ainda há muitos desaparecidos”

“mais de 600 pessoas desabrigadas”

“ 35 municípios afetados até agora”

“ havia perto de 10 espécies endêmicas do Rio Doce”

“ Rejeitos espalhados por 826 km de extensão do Rio” (até agora)

“…destruíram duas vilas, mataram pessoas e algumas toneladas de peixes ao longo dos 853 km do rio Doce.”

“1000 hectares de áreas de proteção permanente atingidos na beira dos rios”

“ao menos 1.249 pescadores foram afetados em mais de 40 cidades mineiras e capixabas.”

“Dentre as espécies em risco estão os peixes Surubim, lambari, andirá, curimbá do rio doce, acará topete, piaba vermelha, além de anfíbios, répteis, aves e mamíferos. Na lista, entram espécies marinhas.”

“ A lama está se alastrando por extensas áreas de ambiente marinho, afetando a vida aquática na costa do Espírito Santo e da Bahia”

Para quem tiver interesse em acompanhar a sucessão dos acontecimentos e avaliações confiávies, sugiro o site do Grupo independente de Avaliação de Impacto Ambiental, criado pro pesquisadores da Universidade de São Paulo: https://giaia.eco.br/base-de-dados/ (Ainda em desenvolvimento).

 

disso. Causas e impactos estão entre as dúvidas que ficam. E, acreditem, continuaremos com elas por algum tempo. Primeiro, porque há manipulação de informações e, com isso, notícias contraditórias e duvidosas, que escondem interesses: “Foi um acidente”; “ Não foi acidente, foi crime ambiental”; “Samarco alega que não há perigo nos rejeitos”; “Chumbo foi detectado nas amostras de lama do Rio Doce”; “O Rio vai se recuperar em 5 meses”; “O Rio Doce está morto”. Algumas delas são obviamente mentirosas, e não precisa ser especialista para saber. Arranque uma árvore do seu quintal e veja se ela será substituída em 5 meses por outra igualmente frondosa, mesmo que você jogue uma sementinha para ajudar…

Segundo, pois ainda é necessário investigação e estudos pra saber as causas e consequências. Mas, ainda que pairem dúvidas sobre ter sido ou não um acidente, fato é: não é incomum as empresas adotarem estratégias negligentes e irresponsáveis com os sistemas que se inserem, sociais e ambientais. Começa no processo de licenciamento, muitas vezes conduzido para atender interesses político-econômicos (lembre-se que mineradoras estão entre os maiores financiadores de campanhas eleitorais), e estende-se até as práticas de operação do empreendimento. Já que incitamos algumas dúvidas, arrisquemos algumas reflexões. Sobre a toxidade da lama, os rejeitos de mineração em geral contém altos graus de toxidade. E não é exatamente por isso que se constroem as barragens de rejeitos? Se eles não fossem contaminantes, barragens não seriam necessárias. E ainda que a lama não fosse tóxica, já seria o suficiente para alterar toda a cadeia alimentar no Rio Doce, e consequentemente, todo seu sistema socioecológico, alterando a entrada de luz, a oxigenação das águas, a produtividade primária e a cadeia decorrente.

Sobre as consequências e impactos, que ainda estão se dispersando, não podem ser totalmente mensurados em tão curto período de tempo. Nem eles são conhecidos e nem sequer se estabilizaram. Os impactos continuam acontecendo, e vão continuar por anos. Aliás, o impacto ambiental da Samarco no Rio Doce começou ocorrer há muitos anos. Todos os grandes projetos de “desenvolvimento”, como atividades de mineração, usinas, construção de dutos transcontinentais, instalação de portos etc geram impactos nos sistemas socioecológicos em que se instalam desde o momento do seu planejamento. Um “acidente”, como o de Mariana, talvez seja só o ponto de irreversibilidade.

Desconheço detalhes do histórico da Samarco/ BHP/ Vale e seus estudos de impacto ambiental, mas há uma constante que se repete nesses empreendimentos. De maneira bem simplificada: uma grande empresa aporta em região abundante em recursos naturais, geralmente área com comunidades rurais que vivem desses recursos, com suas culturas tradicionais e todo um sistema único de conhecimentos e práticas de uso. Pressionadas, essas comunidades vão saindo do entorno através de processos mais ou menos escusos. Ou vendem suas terras a preço de nada, ou saem de graça ao serem ameaçados, ou são desapropriados etc… Seguindo, a empresa divulga que trará o “desenvolvimento” para a região, gerando muitos empregos. A empresa monta uma audiência pública, alguns se convencem, outros não. Anos se passam, a licença sai, e começam as obras. Só que junto com elas, chegam os funcionários, em sua maioria homens que vem de outra região, chegando a multiplicar o número de homens no município sede. E nada de empregos para os moradores… As obras são finalizadas e as vilas herdam diversos problemas sociais. Marginalização, prostituição, maior circulação de álcool e drogas, uma leva de adolescentes grávidas e de filhos sem pais. Findas as obras, começa a operação do empreendimento (após novo licenciamento), para o qual bastam poucos funcionários especializados. Neste momento, as comunidades locais sentem os impactos que já ocorrem percebendo que o tão esperado desenvolvimento é na verdade um des-envolvimento, o des-envolvimento das comunidades com seus territórios, com os processos de gestão do mesmo, com os recursos naturais. Essa não é a história da Samarco no Rio Doce. É a história de inúmeros empreendimentos des-envolvimentistas… já escutei isso de Sudeste a Nordeste do Brasil, e também em algum lugar da América do Sul. E não se espante se não for exatamente isso o que a empresa referência em mineração brasileira estiver fazendo na África, com agravantes da vulnerabilidade social.

Mas e o Rio Doce, vai se recuperar? Em ambientes bem conservados, o sistema socioecológico absorve as alterações aos poucos, adaptando-se às novas realidades, mantendo sua estrutura e função, ou voltando ao estado de origem após um tempo. É o que chamamos de resiliência e que já estava ocorrendo, com as influências da mineração. Dentre os impactos típicos desta atividade estão o desmatamento, a destruição da estrutura do solo, a contaminação do solo e da água, a mudança no curso de rios, o dessecamento de aquíferos, o risco de acidentes. Mas, o rompimento de uma barragem de rejeitos na magnitude do que foi, pode representar a irreversibilidade na manutenção deste sistema.

Estão dizendo que o rio foi destruído pela lama. Se fosse “apenas” um rio, já seria muito, mas foi-se um sistema complexo que se criou em torno do rio, um sistema com rios, afluentes e efluentes, com vidas, histórias, espécies, serviços ambientais, pessoas, cultivos, culturas, lendas, rituais. Diversas comunidades de agricultores, indígenas, quilombolas e pescadores que fazem parte deste complexo, dependem diretamente desse sistema para sua sobrevivência material e cultural. Para muitas, o rio é um ambiente que envolve um universo simbólico e ritualístico. E ele também depende dessas comunidades para se recuperar. Só que a atual geração dos adultos não verá mais o Rio como era. Porém, as comunidades precisam recomeçar suas vidas, plantar em outro lugar, pescar em outro rio. Ou então, abandonar de vez as atividades tradicionais. E neste período, o conhecimento e a cultura tradicional em torno do Rio não serão transmitidos para as futuras gerações. Rio sem pessoas, pessoas sem Rio. E aí, abre-se precedente para o avanço da mineração.

O Slow Food, assim como outras organizações, movimentos, sociedade, governantes pode ter atuação importante nesse cenário. Lutar para que o Rio seja uma área destinada à recuperação e aumento da resiliência deste sistema. Fomentar meios das comunidades afetadas manterem seus modos de vida, ainda que em outro lugar. Além disso, para prevenir que o mesmo não ocorra em outros lugares, é fundamental apoiar movimentos sociais de ameaçados e atingidos por barragens e pressionar por mais transparência nos processos de licenciamento de grandes empreendimentos. Se esses projetos não forem guiados por sérios estudos de impacto ambiental, “acidentes” do mesmo tom vão continuar ocorrendo com essas comunidades, no Brasil, na América Latina, na África.

Se ainda lhe faltam dados para entender a dimensão desse desastre, segue alguns:

“ 50 milhões de metros cúbicos de rejeito de minério de ferro são despejados no Rio Doce”

“Distrito de Bento Rodrigues (MG) é destruído pela enxurrada de lama.”

“Milhares de pessoas ficaram sem água. A água do Rio Doce não deve ser usada para fins de abastecimento”

“ 11 mortos foram identificados, e ainda há muitos desaparecidos”

“mais de 600 pessoas desabrigadas”

“ 35 municípios afetados até agora”

“ havia perto de 10 espécies endêmicas do Rio Doce”

“ Rejeitos espalhados por 826 km de extensão do Rio” (até agora)

“…destruíram duas vilas, mataram pessoas e algumas toneladas de peixes ao longo dos 853 km do rio Doce.”

“1000 hectares de áreas de proteção permanente atingidos na beira dos rios”

“ao menos 1.249 pescadores foram afetados em mais de 40 cidades mineiras e capixabas.”

“Dentre as espécies em risco estão os peixes Surubim, lambari, andirá, curimbá do rio doce, acará topete, piaba vermelha, além de anfíbios, répteis, aves e mamíferos. Na lista, entram espécies marinhas.”

“ A lama está se alastrando por extensas áreas de ambiente marinho, afetando a vida aquática na costa do Espírito Santo e da Bahia”

Para quem tiver interesse em acompanhar a sucessão dos acontecimentos e avaliações confiávies, sugiro o site do Grupo independente de Avaliação de Impacto Ambiental, criado pro pesquisadores da Universidade de São Paulo: https://giaia.eco.br/base-de-dados/ (Ainda em desenvolvimento).

Marina Vianna, Universidad São Carlos, Slow Food

 

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